3ª Turma do STJ decide que exclusão de cobertura para Fertilização In Vitro não é abusiva
Tivemos no último dia 05.06, o julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça) do Recurso Especial 1.795.867 – SP, que entendeu não haver abuso na negativa de cobertura para o tratamento de Fertilização In Vitro, este artigo visa demonstrar, de forma clara e contundente a necessidade de modificação deste entendimento, através das legislações vigentes e o direito constitucional ao planejamento familiar.
Impõe incialmente entender o conceito de infertilidade, já que estamos diante de um debate que trata da impossibilidade de procriação de forma natural. A infertilidade nada mais é do que a dificuldade de gerar um filho, seja pelo homem ou pela mulher, que pode surgir como sintoma ou consequência de alguma doença, como por exemplo: endometriose, hidrosalpinge e azoospermia, ou simplesmente sem nenhuma causa aparente. Normalmente se entende que o casal é infértil após 12 meses de tentativas de gestar de forma natural sem obter sucesso.
A infertilidade conjugal existe desde os tempos antigos, a própria bíblia refere-se a ela quando Sara tenta engravidar (Gênesis, 16). Com o passar do tempo entendeu-se a infertilidade como um problema biológico que a medicina pode reverter, através das técnicas de inseminação artificial, fertilização in vitro, ovodoação e gestação por substituição.
A Organização Mundial de Saúde recomendou que a infertilidade seja considerada um problema de saúde global e alertou para a necessidade de adaptação das técnicas de reprodução assistida.
É uma doença com inclusão no CID e, portanto, deve ser coberto seu tratamento pelos planos de saúde, uma vez que a Lei nº 9.656/98 garante a cobertura de todas as doenças reconhecidas pela CID (classificação internacional de doenças) ao dispor no artigo 10: É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei.
Portanto, tomando como premissa a cobertura da integralidade das doenças constantes da Classificação Internacional de Doenças, CID, temos que a infertilidade, com CID-10 N97(feminina) e N46 (masculina), deve ser de cobertura obrigatória.
A Resolução Normativa (RN) 387/2015 da ANS, revogada através da Resolução Normativa 428/2017, já definia o Planejamento Familiar “como conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 8º, I), mantida na nova RN.
A RN 428/2017, atualiza o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999;
Quando a Resolução cita o artigo 35-C, III da Lei 9.656/98(Lei que regula os planos de saúde), no artigo 8º, diz que é de cobertura obrigatória o atendimento ao Planejamento Familiar, como o próprio artigo 35-C da lei de planos de saúde traz: “É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
I – atendimento de emergência;
II – atendimento de urgência; e
III – de planejamento familiar.”
Nos casos dos incisos I e II, temos a interpretação ampla dos Tribunais Superiores e Regionais, devendo haver a cobertura integral, de atendimento, procedimento, exames e tratamentos, desde que sejam em caráter de urgência ou emergência, inclusive com prazo máximo de carência de apenas 24h. Como pode a interpretação relativa ao inciso III ser tão restrita, ao ponto de não se considerar a reprodução assistida como forma de planejamento familiar? De forma grosseira, a vasectomia e a histerectomia, que são a esterilização masculina e feminina são plenamente cobertas e fundamentadas no direito ao planejamento.
Ressalto que a RN 428/2017 define como atendimento clínico: aquele realizado após as atividades educativas, incluindo anamnese, exame físico geral e ginecológico para subsidiar a escolha e prescrição do método mais adequado para concepção ou anticoncepção. Por mais que o Artigo 35-C da Lei 9.656/98 cite que é de cobertura obrigatória o ATENDIMENTO, que se compreende em um termo mais amplo do que o atendimento clínico, ao conceituar o termo “atendimento clínico” a RN descreve que prescrição do método mais adequado para concepção ou contracepção está incluso, porém que vimos na prática é apenas a cobertura para a contracepção, pois esta evita novos custos ao plano de saúde.
Neste momento, temos que o próprio STJ entende que a prescrição do médico assistente deve ser acolhida pelos planos de saúde, não cabendo a estes interferir no tratamento indicado, como também nos casos de doença coberta pelo plano, é abusiva a negativa do tratamento e procedimentos relativos à ela.
A decisão do STJ que aqui rebatemos, caracteriza a fertilização in vitro como meio de inseminação artificial, o que demonstra claramente à ausência de conhecimento técnico dos Ministros para determinar que Fertilização In Vitro e Inseminação Artificial são a mesma coisa. O QUE NÃO É VERDADE.
O Tribunal de Justiça do Paraná, no Agravo de Instrumento n. 1.603.500-0 em face da decisão da 20ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, trata essa diferença, decidindo que não pode se englobar um conceito noutro, vejamos:
“Qual a diferença entre a inseminação artificial e a Fertilização in Vitro (FIV)? A inseminação artificial consiste, basicamente, em cortar o caminho percorrido pelos espermatozoides. Há casos em que a mulher tem, no colo do útero, anticorpos que os matam antes que possam alcançar o óvulo. Por isso, o sêmen do parceiro é coletado e introduzido diretamente na cavidade uterina, onde os anticorpos não estão mais presentes. Aí, com o campo livre, a corrida até o óvulo ocorre sem problemas. Outro caso em que se usa essa técnica é quando o homem produz poucos espermatozoides. O sêmen é coletado e tratado para que sua concentração aumente. Já na FIV, conhecida popularmente como “bebê de proveta”, a origem da vida se dá fora do corpo da futura mãe. O primeiro passo é o uso de drogas que estimulem a produção de mais de um óvulo por ciclo. Esses óvulos são aspirados por uma agulha e colocados em uma substância cheia de nutrientes, para mantê-los vivos. Aí, então, os espermatozoides são colocados no mesmo recipiente, para que haja a fecundação. Após sua fertilização, o óvulo é mantido em uma estufa, onde começa a ocorrer a divisão celular. Depois de se formarem oito ou 16 células, o embrião é colocado no útero da mulher. A fertilização in vitro aparenta ser uma técnica de reprodução assistida, mas diferente da inseminação artificial (relação gênero/espécie) informação que se consegue extrair dos contratos, teria de indicar, necessariamente, a técnica da fertilização in vitro como um tratamento excluído da cobertura e não simplesmente definir a inseminação artificial “como técnica de reprodução assistida, que inclui a manipulação de oócitos e esperma para alcançar a fertilização, por meio de injeções de esperma intracitoplasmáticas, transferência intrafalopiana de gameta, doação de oócitos, indução de ovulação, concepção póstuma, recuperação espermática ou transferência intratubária do zigoto, entre outras técnicas”. A informação talvez possa satisfazer ao profissional da área de reprodução humana, mas não ao leigo, o consumidor mediano não versado, que talvez consiga distinguir uma coisa da outra pela referência a nomes (nomenclatura científica) que se tornaram vulgares com o passar do tempo pela sua divulgação.”
A jurisprudência do próprio STJ reconhece a possibilidade de o plano de saúde estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura dessas doenças. “É abusiva a negativa de cobertura pelo plano de saúde de procedimento, tratamento, medicamento ou material considerado essencial para preservar a saúde e a vida do paciente”, decidiram os ministros da 3ª Turma do STJ ao julgar o AgRg no REsp 1.325.733.
Como também o próprio STJ entende que havendo cobertura para tratamento de doença, o plano de saúde deverá custear o procedimento e medicamento necessário para garantir o tratamento da doença, decisão da 4ª Turma do STJ ao analisar o recurso AgRg no AREsp 718.634.
São várias as decisões do Superior Tribunal de Justiça que contradizem o entendimento disciplinado na decisão publicado. E, ainda que se ultrapasse a tese da cobertura da Fertilização Assistida como meio de tratamento para doenças que ocasionam a infertilidade, o planejamento familiar deve ser garantido, seja por políticas públicas (SUS) ou através de pessoas jurídicas de direito privado (Operadoras de Saúde), de acordo com a Constituição Federal.
O núcleo familiar é objeto de muita proteção no Brasil, dentre os cuidados que se deve ter com a família está o planejamento familiar, que é o controle que as pessoas devem ter sobre a sua fecundidade e saúde reprodutiva, e define-se como um conjunto de ações que auxiliam homens e mulheres a planejarem a chegada de um filho ou prevenir uma gravidez, todo esse planejamento é coberto pela Lei n.º 9.263/96.
A nossa Constituição indica que a o planejamento familiar deverá basear-se na dignidade da pessoa humana e na parentalidade responsável, sendo VEDADO ao Estado qualquer tipo de controle ou interferência no exercício desse direito por parte de instituições oficiais ou privadas, artigo 226, §7º. Quando a resolução normativa da ANS, ou o CNJ, através da Jornada de Saúde, impedem que seja efetivado o direito ao planejamento familiar através dos planos de saúde, estamos claramente diante de uma interferência ao preceito constitucional.
Lei do Planejamento Familiar é literal ao dispor no art. 9º que para o exercício deste direito, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção, então como pode ser coberto apenas os procedimentos menos custosos aos planos de saúde?
A constituição é clara quando define que os serviços de saúde serão fornecidos através da rede pública, mas também por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, sendo que neste último incluem-se as operadoras de saúde, que devem garantir, nos termos da Carta Magna à saúde digna e eficaz.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
O recurso às resoluções da ANS como regras definitivas de regulação dos contratos tem como inconveniente principal os excessos praticados pela agência reguladora contrários às normas do Código do Consumidor, tal como detectado pela doutrina “Todavia, examinando a experiência regulatória na última década, percebem-se nitidamente dois fenômenos: a) houve um excesso de confiança do legislador na competência regulatória das agências, frustrada por uma ação pouco convincente do órgão na proteção do interesse dos consumidores; e b) o superdimensionamento da competência normativa secundária (regulamentar) da agência, tem dado causa à edição de regulamentos de frágil conformidade com as disposições e/ou fundamento teleológico da Lei 9.656/98 e do Código de Defesa do Consumidor. E de modo mais ostensivo a ação desajeitada da ANS revela-se na interpretação da Lei 11.935/09, que incluiu como obrigatória a cobertura do atendimento para planejamento familiar[1]”. Ainda, o TJPR entendeu que “não obstante, a ANS, mais uma vez arvorando-se detentora de poderes que de fato não tem, pretextando regulamentar a Lei 11.935/2009, poucos dias após a edição desta, editou a RN 192, de 27.05.2009, por intermédio da qual pareceu objetivar a supressão de quase todos os seus efeitos, praticamente revogando-os. Realmente, dispôs expressamente essa Resolução que as técnicas de reprodução medicamente assistida, conforme definidas no inc. III do art. 13 da então vigente RN/ANS 167/2008, não gozavam de cobertura obrigatória. A RN/ANS 192/2009, aliás, dava como únicas consequências da nova Lei a ampliação do rol previsto na RN/ANS 167/2008 em quatro procedimentos, todos de baixa custo, a saber, consulta de aconselhamento para planejamento familiar, atendimento educacional para planejamento familiar como instruções sobre o uso de métodos contraceptivos), exame hormonal para detectar o nível sérico de sulfato de dehidroepiandrosterona (SHDEA) e implante de dispositivo intrauterino (DIU) hormonal. Posteriormente, a RN/ANS 192/2009 foi revogada pela RN/ANS 211/2010, que manteve o quadro absolutamente inalterado, conservando a mesma ilegal disciplina. A atuação da ANS, ao arrepio da Lei lamentável dizer -, exige do aplicador do direito interpretação que privilegie todo o sistema de proteção aos consumidores de planos de saúde, ainda que para isso se tenha de negar vigência do Ato Administrativa dissonante dele. O mesmo erro foi cometido pela Resolução 387, citada pela ré. O seu artigo 20 simplesmente repete, e incide na mesma falha[2], a disposição contratual da cláusula 12.1.9, nada esclarecendo quanto à técnica da fertilização in vitro.”
Deste modo podemos concluir que a ANS tenta de todas as formas e manejos blindar os planos de saúde na cobertura dos procedimentos de técnica de reprodução assistida, esquecendo, que temos a Lei Maior que garante o direito ao planejamento familiar através de todas as técnicas disponíveis e legais, bem como que sejam executadas tanto pelo SUS quanto pelas Operadoras de Saúde.
[1] MIRAGEM, Bruno, Curso de direito do consumidor, 3.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 357.
[2] SAMPAIO, Aurisvaldo, Contratos de plano de saúde, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 285.
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