Digital Health no suporte a vacinação
A vacinação da Covid-19 que se inicia em alguns países nas próximas semanas ou meses, será a maior operação logístico-imunológica da civilização. Com 7,4 bilhões de seres humanos, é preciso vacinar cerca de 4 bilhões deles nos próximos meses e anos para obter algum tipo de imunidade coletiva. Será a mais colossal operação de saúde pública da história, sendo também a mais cara, a mais desafiadora, a mais complexa, etc. Será um teste à capacidade humana de lutar contra um inimigo biológico comum, mas também contra um inimigo socioeconômico mais comum ainda: a iniquidade social, que pode atrasar (ou excluir) a vacinação da maioria dos habitantes dos países de baixa renda (segundo pesquisadores do Global Health Innovation Center da Duke University as populações mais pobres podem ter de esperar até 2024 para receberem qualquer tipo de vacina). Milhares (talvez milhões) de pesquisadores, sanitaristas, infectologistas, especialistas em logística e uma legião de outros profissionais trabalham dia e noite para preparar a maior operação de imunização de todos os tempos. Enquanto bilhões de vacinas são produzidas ao redor do mundo (podendo levar de 3 a 4 anos para termos uma quantidade suficiente para imunizar a população-alvo), um cortejo ‘logístico-imunológico’ se move para a distribuição global das doses.
Executivos das companhias aéreas, por exemplo, já avisaram que transportar uma vacina a todos os terráqueos ao redor do planeta pode levar até 2 anos (“o maior desafio de todos os tempos da indústria de transporte aéreo”). Segundo a IATA (Agência Internacional de Transporte Aéreo), um programa de vacinação com apenas uma dose por pessoa necessita algo como 8 mil aviões Boeing 747 e um apoio monumental das companhias aéreas, aeroportos, organizações internacionais de saúde, empresas farmacêuticas, Governos, etc. Outra questão que flutua no ar é que teremos mais de uma vacina (fórmula), o que exige múltiplas estratégias de distribuição e armazenamento. Sem falar que alguns dos imunizantes em processo de aprovação carecem de “temperaturas glaciais” para se manterem ativos (a Global Alliance for Vaccines and Immunization estima que apenas 10% dos Centros de Saúde nos países mais pobres têm fornecimento confiável de eletricidade, com menos de 5% deles com algum refrigerador qualificado para vacinas). O COVAX ainda é a principal esperança de acesso aos mais frágeis.
Mas nada disso se compara ao envolvimento de milhões de profissionais de saúde que estarão centrados na vacinação. Também será deles que emanará a matriz assistencial à bilhões de indivíduos após a vacinação em massa. Cada um dos vacinados, em cada uma das vacinas, pode encontrar alguns sintomas (ainda que mínimos) e vai conviver com um ‘novo status’ imunológico, compartilhando a vacina com suas comorbidades. Um rastreamento imunológico populacional certamente será feito por cada provedor, distribuidor ou ‘vacinador’, embora na escala individual é com os médicos que as pessoas irão realmente se aconselhar e saber se podem seguir com suas vidas.
A boa notícia é que essa ‘marcha imunológica global’ acontece ao mesmo tempo em que outro fenômeno ocorre na Saúde: o avanço das tecnologias em digital health. Em nenhum outro período da história pudemos contar com uma densidade tão abrangente de ferramentas tecnológicas para monitorar uma vacinação em massa. Para apoiar essa imensa jornada, existe (ou está em desenvolvimento) uma abundante carga tecnológica para suportar também o pós-vacinação. No caso da Covid-19 a exigência é gigante. O processo de vacinação de 1,4 milhão de trabalhadores do NHS (Reino Unido), por exemplo, carece de instrumentos digitais que agilizem o fluxo de vacinação em todos os 217 NHS Trusts, que empregam cerca de 800 mil dos 1,2 milhão de funcionários do sistema público britânico de saúde, que em boa maioria estão na linha de frente contra a Covid-19. Um dos aplicativos de Artificial Intelligence para suportar a tarefa de agendamento, por exemplo, é o DrDoctor, que permite ao NHS escolher datas, horários, locais, circunstâncias e aparato logístico que não impacte os cuidados aos pacientes. Ninguém espera que ocorra nas unidades de atendimento de Londres filas quilométricas para vacinação de seus intensivistas, com pacientes sendo atendidos precariamente nesses períodos. Sem um “quick-book digital” essa operação poderia levar meses. Como no Reino Unido, todos os Sistemas Públicos e Privados de Saúde precisam de sistemas inteligentes para integrar a vacinação dos profissionais de saúde com todas as práticas funcionais deles.
Muitos países arregimentaram milhares de especialistas para apoiar o monitoramento e a segurança da vacinação, mesmo depois dela ocorrer. No Canadá, por exemplo, equipes estão testando novos aplicativos que rastreiam os registros de imunização. Um dos sistemas, criado pela CANImmunize e denominado Clinic Flow, será usado para agendar a vacinação da população nas clínicas de saúde, minimizando a burocracia associada à vacinação. As pessoas podem ‘virtualmente’ marcar sua vacinação, preencher a triagem para Covid-19 e assinar formulários de consentimento vacinal, tudo antes de entrar presencialmente em uma clínica. Essas informações serão enviadas ao paciente e ao Departamento de Saúde Ocupacional para suporte ao rastreamento pós-vacina. Com vários imunizantes entrando no mercado, essa informação em tempo real será de fundamental importância ao apoio imunológico coletivo.
Outra questão debatida em quase todos as nações é a utilização dos sistemas de “drive-through” para vacinação em massa. Um aplicativo desenvolvido no Reino Unido pela Substrakt Health apoia as redes de atenção primária (NHS) que executam programas de ‘drive-through-vaccination’, podendo, por exemplo, vacinar e atualizar simultaneamente o Banco de Dados Nacional de Imunização. Antes da sessão de vacinação, o aplicativo envia a cada indivíduo um código exclusivo em QR (SMS), sendo ele coletado pelo tablet do médico, que recupera automaticamente as informações do paciente, podendo então selecionar o número do lote e o local da injeção. O centro de vacinação Heathcot Medical Practice (sede em Woking, arredores de Londres), por exemplo, já tem usado esse aplicativo em suas clínicas drive-through, que vacinam mais de 7 mil pacientes/dia em 70 diferentes tipos de vacina. O aplicativo é capaz de administrar e concluir uma consulta-vacinal em cerca de um minuto, atualizando automaticamente os registros do paciente. Nem nos melhores serviços de take-away alimentar (Mcdonald’s, por exemplo) a dispensação do produto é tão rápida.
Outra quase-polêmica, pelo menos nos países emergentes, veio da manchete do jornal The Wall Street Journal (29/11/20): “Farmácias adicionam freezers e treinam funcionários para operarem como unidades de vacinação na Covid-19”. Se no Brasil esse tema continua controverso, nos EUA já está claro que as farmácias, notadamente as de supermercado, serão provedoras de vacinação em massa, quiçá sejam os principais agentes de vacinação do país. O varejo farmacêutico corre para garantir o equipamento necessário, bem como treinar seus profissionais para imunização em massa. Além da disponibilidade física (PDV), eles preparam uma mega estrutura de serviços on-line para agendamento e FAQ. Grandes redes varejistas (Kroger, Albertsons, CVS, etc.) estão no detalhamento final para disparar seus serviços tão logo a FDA homologue as vacinas. Sempre fica a dúvida de como o Brasil pretende vacinar em curto espaço de tempo mais de 100 milhões de indivíduos sem utilizar o seu vasto parque fármaco-varejista.
Também não faltam opções de larga envergadura tecnológica. Mark Treshock, líder de soluções em healthcare-blockchain da IBM, explicou recentemente como a tecnologia pode ser usada para validar a cadeia de suprimentos de vacinas, bem como os registros pessoais de vacinação. “Essencialmente, cada uma dessas vacinas requer duas doses para cada pessoa no mundo, algo como 15 bilhões de doses. Esses medicamentos serão os mais procurados, falsificados e provavelmente os mais desviados nos primeiros 6 a 12 meses após o seu lançamento”, explicou Treshock. Esse risco pode ser mitigado com o auxílio de blockchain. Ele explica que a funcionalidade da ferramenta está ajudando na integridade da cadeia de suprimentos sanitários, tendo o potencial de rastrear as vacinas e garantir que não sejam comprometidas. “O que você realmente precisa é pegar um frasco da vacina e ter uma visão do ‘caminho’ que ele tomou (tracking), garantindo que nesse percurso sua integridade (temperatura, validade, desvios, etc.) tenha sido mantida”, explica ele. Além disso, as plataformas de blockchain podem ajudar os pacientes a controlar seus registros-vacinais e fornecer comprovantes para viagens, escolas e inúmeras outras demandas. “A ideia é que eu possa no meu celular, por exemplo, ter uma credencial verificável e imutável que represente e comprove minha vacinação. Uma companhia aérea, por exemplo, pode digitalizar essa confirmação da mesma forma que digitaliza o cartão de embarque. A estrutura blockchain é imutável e está vinculada a um único registro, que pode ser verificável, assegurando meu status de vacinado”, completa Treshock. O passe IBM Health Pass, por exemplo, é desenvolvido em blockchain para o status-checking da Covid-19 de uma pessoa. Ele é baseado em um conjunto de padrões abertos (W3C), que define como a privacidade federada é armazenada e compartilhada, sendo o passe totalmente interoperável com outros sistemas que seguem o mesmo padrão. Cada dose da vacina (uma ou mais) seria rastreada por indivíduo, emitindo on-line a sua confirmação e o registro da dose. Não falta tumulto quando o debate caminha para o tal “passaporte de imunizado”, que além de polêmico (privacidade) é de difícil implementação, exigindo infraestrutura, conectividade e competência tecnológica para mantê-lo operacional 24 x 7.
Outra aplicação digital de grande amplitude são os “buscadores de vacina”. São apps que pesquisam para o usuário onde há um posto de vacinação, e qual vacina está disponível. O Vaccine Finder, por exemplo, sistema desenvolvido pelo Google há uma década para ajudar na implantação da vacina H1N1, deve ser um driver para aplicações similares. Ele não coleta dados pessoais, que seriam necessários para enviar lembretes aos indivíduos sobre a segunda dose. Por outro lado, a não identificação protege a privacidade do usuário. Como as vacinas devem causar efeitos colaterais leves (por si só uma boa notícia, significando que o sistema imunológico está funcionando), existe a preocupação de que essa colateralidade possa inibir as pessoas a voltar para a segunda dose. Também a agência federal norte-americana CDC (Centers for Disease Control and Prevention) vai disponibilizar um aplicativo de smartphone (V-SAFE) para rastrear quaisquer efeitos colaterais das vacinas. O app deverá enviar textos diários às pessoas que forem vacinadas, direcionando-as à portais na web para relatarem sintomas potenciais após a vacinação. Esse ‘verificador de saúde pós-vacinação’ fornecerá também acompanhamento telefônico a qualquer pessoa que relatar eventos adversos mais significativos.
Isaac Newton observou que todo cientista que avança em seu campo de atuação está “sobre os ombros de gigantes”. No caso da Covid-19, existem muitos gigantes que trabalharam nos últimos meses, continuarão nos próximos, e permanecerão discretos quando a pandemia virar livro de história. São milhões deles, sentados em suas bancadas ou clinicando no front pandêmico. Merecem a nossa gratidão. Não é possível saber o que alcançaram individualmente, ou quais foram suas vitórias ou derrotas. A única coisa que podemos ter certeza é que só conseguiram lograr êxito porque em todos os momentos tiveram ao seu alcance um “computador”.
Sobre o autor
Guilherme S. Hummel é Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum
eHealth Mentor Institute (EMI) – Head Mentor